sábado, 27 de junho de 2009

COMBATENDO EM PROL DO COMBATE

Por: Benício Ferrari Júnior

Combate a incêndio no Brasil tem sido uma área de atuação relegada.

As técnicas e a doutrina no Brasil evoluíram muito pouco durante muito tempo. Por décadas a fio o treinamento de combate a incêndio foi focado no “bomba-armar”. Há muito se percebeu que havia desorganização, afobação e excesso de água nas atuações frente a incêndios. Isso era combatido nas explanações e condenado nas instruções. A grande questão é que apenas os sintomas foram tratados sem que as causas fossem enfrentadas e resolvidas.

Não sei se isso é causa ou conseqüência, mas até poucos anos atrás não era possível encontrar cursos realmente de especialização em combate a incêndio. O que estava, e ainda está, em voga é Busca e Salvamento e Atendimento Preospitalar (já de acordo com o novo acordo da língua portuguesa). Nessas áreas não faltam cursos.

As guarnições de combate a incêndio eram – e são em muitos lugares – formadas pelo “resto” da tropa, por aqueles que não tem curso algum ou que sobraram na composição das demais guarnições.

Cheguei a presenciar situações em quartéis nos quais só o efetivo da guarnição de incêndio tira ronda na madrugada.

Combate a incêndio não é, definitivamente, a menina dos olhos das Corporações de bombeiros aqui no Brasil.


“Na minha época...”

Cursei o CFO em uma Academia de Bombeiro em 1998-2000 e lá fui treinado em combate a incêndio praticamente do mesmo jeito que se fazia desde há várias décadas: focando o “bomba-armar”.

Não culpo a Academia na qual me formei ou muito menos meus instrutores à época. Eles trabalharam com o que tinham à mão. A internet era algo muito restrito e incipiente no Brasil, de modo que o contato com as novas tecnologias era muito limitado. Até mesmo as mídias para divulgação eram de pouca expressão (usava-se primordialmente o disquete). A compra de livros estrangeiros era, portanto, muito difícil.

Enquanto cadete na Academia de Bombeiro, durante os serviços que tirávamos junto aos Carros de combate a Incêndio, já pude notar que o treinamento era muito diferente da prática. Eu percebia que na prática não se usava o “bomba-armar” e achava isso muito estranho, mas não podia julgar se o problema era que treinávamos algo que não se aplicava na prática ou se não aplicávamos na prática algo que deveríamos aplicar. Eu não era capaz de discernir se o problema estava na prática ou no treinamento.

Outro problema que percebia era a afobação que tomava conta da guarnição nos combates a incêndio bem como o excesso de água que se usava no combate (dizia-se que o incêndio era extinto por alagamento).
Nas instruções discutíamos o excesso de água e enxergávamos que era um erro. Na prática, continuávamos a usar apenas esguichos que não permitiam o fechamento rápido.

Nas instruções criticávamos a afobação, mas era o que se instalava em uma ocorrência real.

Depois de formado, em meados de janeiro de 2001, em meu primeiro serviço como Chefe de Operações eu fiz exatamente o que fui treinado para fazer: corri de um lado para outro dando ordens e liderei um alagamento no apartamento cuja dispensava queimava violentamente.

A atuação não foi das melhores (para ser bem generoso), mas descobri uma coisa: incêndio era minha área de afinidade. Até então, como todos os que se destacavam operacionalmente no CFO, minha área preferida era Busca e Salvamento, mas nos primeiros serviços, nos primeiros incêndios, percebi que incêndio era o que eu gostava de enfrentar.


Combate a incêndio é fogo!

Dali em diante passei a erguer o estandarte do combate a incêndio. Comecei a batalhar por essa área de atividade e a brigar para que ela fosse reconhecida como uma atividade técnica. Até então, o incêndio era visto como simples, como coisa que qualquer um podia fazer. Dizia-se que combater incêndio “era só jogar água”.

Mesmo ainda com pouco embasamento teórico e pouca experiência prática, comecei a apregoar a todos, inclusive aos componentes das guarnições de combate a incêndio, que incêndio é uma atividade técnica; que até os civis podem jogar água; que se não atuarmos com técnica não fazemos mais do que quaisquer outros (quando se espera que sejamos) e coisas do tipo.

Em 2002 fui um dos instrutores responsáveis pela disciplina de combate a incêndio nos cursos de formação de soldados e sargentos. Nas aulas teóricas enfoquei a tecnicidade da disciplina, porém, nas aulas práticas, fiquei restrito ao que eu conhecia: “bomba-armar”.

Na teoria pude avançar um pouco. Inseri conceitos outrora não debatidos como flashover backdraft, BLEVE, combustibilidade dos gases, entre outros, mas com uma carga horária de 40h para teoria e prática não foi possível aprofundar nada e nem sequer comentar tudo o que é mais importante.

Com a parte da carga horária de 40h que ficou destinada à prática, tive que fazer algumas adaptações por ter aprendido bomba-armar com 3 linhas de ataque e em minha Corporação os divisores eram de 2 saídas, mas não pude avançar muito além da maneabilidade com linhas de mangueira. Atribuo isso a algumas razões.

Primeiramente, eu mesmo não conhecia nada muito além disso em termos de técnica. Treinei avançando pouco além do treinamento que recebi. Somo a isso o fato de que a carga horária exígua não me permitia ensinar muito além do básico, ou seja, armar as linhas de mangueira e saber operá-las.

Em segundo lugar, a falta de equipamentos na área de incêndio era gritante em minha Corporação, como em tantas outras, já que o incêndio era uma atividade relegada. Não possuíamos sequer luvas e capas de aproximação para que os alunos treinassem. Capacetes, balaclavas e aparelhos de respiração autônomos eram fotografias no manual. Os esguichos que possuíamos só permitiam a regulação do jato de água, mas não permitiam abertura e fechamento rápido para operar com “pulsos” de água. Considero ainda relevante o fato de que não possuíamos instalações de treinamento que permitissem a instrução de técnicas de combate.

Um dos resultados foi que os alunos só aprenderam a dispor as linhas de mangueira, operar o esguicho, avançar, recuar e demais comandos de maneabilidade com linhas de mangueira. Os alunos aprenderam técnicas relativas ao estabelecimento que é uma das fases das operações de socorro, sem que tenham aprendido técnicas de combate. Esse resultado foi previsível à época.

Havia outro resultado desse tipo de treinamento. Um que não foi percebido à época e nem foi percebido facilmente. Para entendê-lo é preciso analisar a própria dinâmica do treinamento tal como era feito.


Treinamento focado no “bomba-armar”

O treinamento focado no “bomba-armar” é feito com a guarnição com funções previamente divididas desenrolando as mangueiras e as conectando umas às outras, ao divisor, à viatura e aos esguichos. Cobra-se agilidade, velocidade. A avaliação é balizada pelo número de acertos e erros na montagem e, sobretudo, pelo tempo.

Uma vez acionado, o cronômetro tinha a contagem interrompida apenas quando a água surgisse na ponta das linhas. Isso tem um impacto.

Esse impacto foi o outro resultado que eu percebi depois de formar as primeiras turmas e depois de certo esforço. O esforço foi empregado para vencer as minhas dificuldades em perceber que havia algo errado já que eu não conhecia outro modelo e, posteriormente, para externar meus questionamentos ao modelo preexistente.

Comecei a pensar sobre os erros mais gritantes na atuação das guarnições nos combates a incêndios: afobação – traduzida em uma pressa desmesurada e muita correria para todos os lados – e excesso de água. Analisando, percebi que a resposta que gostaríamos que as guarnições dessem em uma ocorrência era agir com energia, mas com calma, com consciência e técnica e critério no uso de água (apenas para resumir o assunto).

Ao mesmo tempo em que imaginei que para obter uma resposta diferente deveríamos mudar algo nos treinamentos, tive um insight e vi que os treinamentos eram a causa do problema.
Colocando as coisas como as faço pode parecer óbvio, e hoje até é, mas à época não foi nada óbvio perceber que a razão do atabalhoamento e do excesso de água residia principalmente nos treinamentos.

Nos treinamentos os instruendos só corriam o tempo todo. Tudo o que tinham que fazer precisava ser feito o mais rápido possível para que obtivessem a satisfação do instrutor e uma nota melhor. Treinando assim os bombeiros são condicionados a nada diferente de correr feito loucos em uma ocorrência. Eles fazem o que são condicionados a fazer. Não é uma atitude consciente – sei bem disso por experiência própria, já que ocorreu isso comigo, mas é uma atitude recorrente.

Nos treinamentos há muita gritaria e barulho para simular o estresse de uma ocorrência, mas o aluno é cobrado e exigido se responde com calma à gritaria do instrutor.

Nos treinamentos focados em “bomba-armar”, geralmente usa-se água de um hidrante, ou seja, fluxo constante de água sem reservas. Além disso, não se discute o que fazer com a água, mas se foca muito mais em como guarnecer a mangueira, segurar o esguicho e progredir ou recuar. Isso não ensina o instruendo a poupar água, ou até mesmo a decidir se vai ou não jogar água. Na cabeça de quem treina realmente fica gravado que combate a incêndio é sinônimo de jogar água, pois a imagem que o bombeiro tem de seus treinamentos em combate a incêndio sempre envolvem jogar água (além da correria).


Desarmando a “bomba”

Diante dessa agora óbvia constatação e já dispondo de maior acesso a literaturas estrangeiras e artigos publicados na internet, conversei com colegas a respeito de tirar o foco dos treinamentos do “bomba-armar” e mudar a própria filosofia do treinamento de combate a incêndio. O bomba-armar é interessante no que tange ao estabelecimento das linhas de combate, mas o aluno deve entender que ele é prévio ao combate e não pode ser entendido como sinônimo do combate.

Aplicando avaliações aos alunos de 2002, foi possível documentar e mostrar aos superiores que era sentida a falta de uma maior carga horária na disciplina de combate a incêndio, com isso, nas turmas de formação seguintes (a partir de 2005) foi possível estender a carga horária, que passou para 80h para os cursos de formação de soldados em 2006.

Com a aquisição de contêineres, foi possível criar exercícios práticos – que chamamos de oficinas – que enfocassem o combate e não apenas o estabelecimento. Criamos oficinas nas quais o sucesso consistia exatamente em não jogar água. Pudemos demonstrar e treinar técnicas de ventilação forçada hidráulica e combate indireto.

Não mais exigimos correria sem propósito dos alunos e passamos a ensinar conceitos como dimensionamento da cena e gerenciamento de risco.

Continuamos com o barulho e gritaria nas oficinas que simulavam ocorrências, mas, ao contrário de outrora, a gritaria e barulho para simular estresse não eram constantes. Passamos a ensinar os alunos a controlar o estresse, ansiedade e adrenalina e passamos a aumentar o nível do estresse gradativamente para que os alunos pudessem adaptar-se. A disciplina passou a culminar em simulados de ocorrências com fogo real (não confinado ou com focos bem pequenos) que tinham, dentre ouros, o objetivo de propiciar ao aluno a oportunidade de treinar a atuação e o emprego das técnicas sob estresse. Ao contrário de antes, a conduta requerida e reforçada era a de calma diante da pressão dos instrutores.

Os treinamentos foram um sucesso e o nível técnico dos alunos ficou notável. Depois de alguns meses os sargentos chefes de guarnições passaram a disputar as equipes compostas pelos recém formados.

A postura e a atitude dos bombeiros nas ocorrências de combate a incêndio mudou e a atuação começou a ser quase a desejada, patamar que foi alcançado com um pouco de experiência prática adquirida pelos recém formados (o que é absolutamente normal).

Novamente tendo documentado uma avaliação da disciplina aplicada aos alunos, constatamos a percepção dos alunos de que a carga horária para a disciplina ainda estava baixa e conseguimos aumenta-la para 120h passando os tópicos referentes a sistemas preventivos para outra disciplina separada.

Com a aquisição de esguichos com regulagem e com válvula de fechamento rápido (alavanca) foi possível pesquisar, treinar e ensinar técnicas e táticas de combate com uso mais racional de água e até mesmo resfriamento dos gases combustíveis.

Também alteramos a concepção do bomba-armar, pois, na doutrina pretérita de minha Corporação, as tarefas na montagem do bomba-armar eram divididas entre 8 elementos de uma guarnição ideal, quando, na prática, as guarnições possuíam muitas vezes 4 incluindo o condutor-operador. Estabelecemos um protocolo de atendimento para a rotina desde a assunção do serviço até o momento em que se esbarra nas variáveis táticas. Esse protocolo já foi adaptado para a realidade de guarnições multifuncionais e com pouco efetivo. Nesse protocolo, as tarefas vão além de quantas mangueiras devem ser carregadas. Incluem-se também assunção de comando, gerenciamento de risco, dimensionamento da cena e outras.

Nitidamente alcançamos um patamar mais alto no que diz respeito ao combate a incêndio. Porém ainda há muito a subir.


O próximo e necessário degrau

Já disse e faço questão de repetir: não culpo meus instrutores ou os que me antecederam em minha Corporação na trincheira do combate a incêndio. Eles fizeram muito com as ferramentas de que dispunham. Relembro que para eles não havia livros importados, internet, Amazon.com, Google, blogs, etc. Creio que eles fizeram muito mais do que eu teria feito em seu tempo.

Hoje não temos justificativa para não ensinar o melhor e mais moderno aos nossos bombeiros. A informação está disponível aos terabites sob o clicar de um link. Hoje nosso desafio não é acessar o que há de mais novo. Nosso maior desafio é filtrar o excesso de informação.

Hoje já é possível encontrar cursos de especialização em combate a incêndio em outros corpos de bombeiro do Brasil (ainda não pude participar de qualquer deles para comentar) e bombeiros entendendo o combate a incêndio como uma atividade técnica.

Nosso treinamento alcançou melhores patamares, mas é necessário que avancemos ainda mais.

O exército romano, considerado como um dos mais disciplinados e vitoriosos em combate tinham uma rígida filosofia de treinamento. Para eles, os treinamentos eram tão próximos do real que eram tidos como guerras sem sangue. Isso fazia com que as guerras não fossem para eles mais que exercícios sangrentos.

Nossos treinamentos devem parecer-se mais com a realidade, mais com o que encontramos em situações reais. O próximo passo que devemos dar é justamente em direção ao realismo do treinamento. Treinar bombeiros em “faz-de-conta” não os deixa aptos a cumprir de modo eficiente sua missão de salvar vidas e riquezas. Pior que isso, mandá-los atender ocorrências para os quais não foram preparados pode causar-lhes a morte.

Shan Raffel diz que pelo mundo afora há concordância de que combater incêndios é um trabalho perigoso. Mesmo assim, em algumas partes do mundo bombeiros conduzem operações de combate a incêndio em situações de emergência que ameaçam a vida sem que nunca tenham tido a oportunidade de observara o desenvolvimento do fogo em um cômodo, de maneira segura e com menos estresse.

Graças a Deus já avançamos muito nesse sentido. Como disse anteriormente, o ápice da disciplina de combate a incêndio estrutural são ocorrências simuladas nas quais tentamos reproduzir o estresse e as dificuldades de uma situação real. Transcreverei abaixo trechos de um email que recebi de um bombeiro que foi meu aluno no curso de formação. Cerca de um mês e meio depois de formado, o soldado foi atender uma ocorrência de incêndio de grande vulto no centro da capital. Eu estive lá, mesmo de folga, para auxiliar na coordenação do combate. Eis algo da mensagem enviada:

Após este sinistro pude refletir e estou mais preparado para dar um feed back sobre o simulado que ocorreu na disciplina do senhor.

O simulado foi de grande valia. No momento em que caminhávamos para a ocorrência me passava tudo pela cabeça, as lembranças dos treinamentos; como por exemplo: O que solicitar durante o deslocamento, conversa de quem iria ficar à frente das linhas, os cuidados que deveríamos tomar, as informações que tínhamos que passar para o responsável e tudo isso se arrumando ao mesmo tempo na viatura.

As dificuldades impostas durante o simulado nada ficaram devendo ao que aconteceu durante a ocorrência. Até mesmo umas coisas que durante o curso pareciam sem justificativa, como populares atrapalhando a montagem de linhas e dando ordens aos AL SD [ele se refere à figuração dos simulados], e pode ser visto na real, durante o incidente.

Até a bandinha [aqui ele se refere a um grupo de apoio responsável por bater instrumentos de percussão para estressar e atrapalhar as comunicações], que só fazia barulho no simulado fez sentido pra mim. Alguns companheiros diziam: "pra que essa banda, até parece que na ocorrência vai ter isso" "até parece que na hora as pessoas vão atrapalhar". Realmente atrapalham e se você ouvir te dão ordem e tudo mais.

Umas das coisas que mais gosto é de fogo, foi uma experiência muito boa ver a mudança da cor da fumaça enquanto combatíamos, ver e fazer as aberturas para a saída da fumaça e resfriamento do ambiente, ver o jato de água se evaporando antes de chegar ao foco, tudo isto visto em sala de aula. Somente a pressão da mangueira a qual não havia conhecimento, pois a estrutura não possibilitava, pois ligávamos as nossas linhas nos hidrantes que apresentam pouco pressão. Realmente o corpo deve e tem que ficar inclinado e sendo escorado por um auxiliar, assim como treinávamos com as mangueiras vazias ou com pouca pressão.

Uma coisa eu tinha muito em mente, que era a diferença que ao fim do simulado nós podíamos parar, pensar o que houve, sentar e conversar; mas na vida real, ao final da ocorrência nós continuamos sendo observado por populares, repórteres que irão nos avaliar toda atuação. No simulado é a nota (ou melhor apto ou inapto) na vida real são nossas carreiras julgadas por pessoas que nem sabem o quanto é difícil estar em uma situação daquela.

Por tudo que pude analisar após o incêndio, desde do momento da chegada até o fim do combate é que o simulado foi o ponto alto da disciplina e que se perde para a situação real, é muito pouco. Mesmo após esse tempo passado fico analisando o que poderia ter na ocorrência que não tinha no simulado e a única coisa que consigo ver que não houve no simulado, até mesmo por questões que acho dificílima, é que na vida real o esforço mental, de deslocamento até o local e o esforço físico foi muito grande. O desgaste que apresentei logo ao chegar ao quartel foi enorme em comparação ao simulado.

(destaquei)


Considero esse feed back muito importante. Ele é sinal de que avançamos na direção certa, mas também que falta muito a ser alcançado. Veja-se que muito do que o bombeiro encontrou na prática ele viu apenas “em sala de aula”. Pudemos proporcionar a ele muito do que ocorre em uma ocorrência, mas quase nada acerca das peculiaridades de um incêndio estrutural.



Incêndio em compartimento X incêndio ao ar livre

Em muitos treinamentos o fogo é um mero detalhe. Em outros, como os nossos, há fogo, mas não há “incêndio em compartimento” (termo que estou usando como tradução do compartment fire por falta de outro mais adequado).

Focos ao ar livre recebem constante oxigenação e elevam na atmosfera a coluna de ar e gases superaquecida. Quando o foco está dentro de um ambiente fechado, tudo muda. A fumaça começa a ocupar a parte superior do ambiente acumulando-se de cima para baixo e irradiando energia térmica. Essa energia liberada aquece o ambiente e o torna perigoso para os bombeiros. Com o tempo, o combustível do foco sofrendo pirólise decompõe-se mais rápido do que o foco é capaz de queimar. Os gases não queimados acumulam-se na fumaça tornando-a combustível.

O foco pode queimar e reduzir a quantidade de oxigênio no ambiente caso o cômodo não seja ventilado (ventilation controlled fire) fazendo com que a queima fique mais incompleta e mais combustível se acumule na fumaça que, superaquecida, pode deflagrar-se violentamente ante à entrada de ar pela abertura de um acesso. Trata-se do backdraft.

Ou ainda, caso o cômodo seja constantemente ventilado (acessos abertos) os vapores combustíveis liberados dos materiais no ambiente em conseqüência da energia irradiada pela fumaça e os combustíveis presentes na fumaça podem entrar em ignição repentina no que chamam de flashover.

Além desses dois fenômenos, em um incêndio em compartimento, os bombeiros estão sujeitos a encarar mais de 10 outros fenômenos de ignição rápida dos gases (rapid gas ignition). Nada disso ocorre em nossos treinamentos e nos incêndios ao ar livre.

Shan Raffel explana o seguinte:

O ambiente em um incêndio estrutural típico pode mudar repentinamente de o que aprece relativamente estável para um inferno com temperaturas acima de 1.000º C próximo ao teto e acima de 300º C ao nível do piso. Apesar de repentinas essas mudanças podem ser antecipadas se os indicadores forem reconhecidos. A menso que o bombeiro seja capaz de “ler” os sinais que o incêndio está enviando, ele pode tornar-se uma vítima ao invés de um socorrista. Desta feita é essencial que o bombeiro tenha um sólido entendimento dos fundamentos do comportamento do fogo. Isso só pode ser alcançado dando-se ao bombeiro a oportunidade de testemunhar o desenvolvimento do incêndio em um ambiente realista, seguro, controlado e previsível. O bombeiro pode, então, ver os resultados das diferentes técnicas de combate na dinâmica do ambiente. Isso leva à compreensão das implicações das ações não apenas no fogo, mas também em ocupantes presos, outros bombeiros e nos possíveis efeitos de expansão do fogo para as áreas vizinhas.

[...]

Para que os bombeiros possam atuar de modo completo e seguro nas situações e ambientes perigosos nos quais eles são comumente colocados, eles devem acostumar-se em treinamentos, em um ambiente seguro e menos estressante, às condições reais. Isso gera confiança e permite o reconhecimento das condições que podem ameaçar-lhes a vida.


Some-se a isso os dizeres de Ed Hartin:

Incêndios estruturais apresentam desafios dinâmicos e complexos. Bombeiros precisam proteger as vidas dos ocupantes da edificação bem como as suas próprias enquanto controlam o fogo e protegem as áreas não afetadas da estrutura e seu conteúdo. Essas condicionantes requerem que os bombeiros tenham um alto nível de alerta situacional e tomem decisões eficientes com limitadas informações disponíveis (Klein, 1999; Klein, Orasanu, Calderwood, & Zsambok, 1995).

Bombeiros aprendem seu trabalho por meio de um mix de aulas teóricas e treinamentos práticos. A maioria dos treinamentos é conduzido fora do contexto (por exemplo sem fumaça ou fogo) ou em uma simulação de ambiente de incêndio (usando fumaça atóxica, por exemplo). No entanto, isso isoladamente não prepara bombeiros para atuarem sob o calor e a fumaça que eles encontram em um incêndio real ou desenvolve habilidades cruciais na tomada de decisão. Desenvolver esse tipo de expertise requer treinamento sob condições reais de incêndio.

Assim, treinar bombeiros para combate a incêndio estrutural sem que eles encarem um incêndio em compartimento e vejam na prática o que se ensina na teoria acerca do comportamento e evolução do foco e da fumaça é equivalente a mandar soldados para o combate sem que tenham disparado um tiro.



Realismo e segurança

Se o realismo no treinamento é tão importante e só é atingido por treinamentos com fogo real, porque não fazê-lo?

Não é por falta de vontade que não tentamos reproduzir as condições de um incêndio em compartimento em nosso treinamentos. Se não o fizemos ainda, isso se deve a um senso de responsabilidade.

Além de não termos os simuladores apropriados, não temos (ainda) o know how necessário para conduzir um treinamento de incêndio em compartimento com fogo real de modo controlado e seguro.

Como gerar os fenômenos e reproduzir controladamente as condições de desenvolvimento de um incêndio em compartimento não é tarefa simples. É possível fazê-lo, mas é preciso treinamento adequado para aprender como treinar os bombeiros. É preciso dominar a capacidade de “leitura” do comportamento do fogo e as técnicas de operação dos simuladores de fogo real.

O treinamento com fogo real já está largamente experimentado por alguns profissionais como Paul Grimwood (Inglaterra), Ed Hartin (EUA), Shan Raffel (Austrália) e Pierre-Louis Lamballais (França e Bélgica), dentre outros. Os métodos e técnicas de construção dos simuladores, condução dos treinamentos e condições de segurança já foram amplamente testados e documentados.

Respondendo à pergunta acima, não adicionamos ainda o fogo real ao nosso treinamento, a despeito de sua importância, pelo fato de que não dispomos do know how necessário para tanto.

Se quisermos evoluir até eliminar a defasagem que separa nosso treinamento em incêndio do que há de mais avançado é esse know how que devemos buscar. É isso que devemos aprender a ensinar.




Referências:

Hartin, Ed. Why is Compartment Fire Behavior Training (CFBT) Important? Artigo extraído de http://www.cfbt-us.com/ .

Raffel, Shan. Compartment Fire Training in Australia. Artigo extraído de http://www.firetactics.com/ .